quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Há uma literatura negra brasileira e, se houver, o que a caracteriza?



O negro está fora da Ordem

Em nós, até a cor é um defeito.
Um imperdoável mal de nascença,
o estigma de um crime.
Mas nossos críticos se esquecem
que essa cor é a origem da riqueza
de milhares de ladrões que nos
insultam; que essa cor convencional
da escravidão tão semelhante
à da terra abriga sob a superfície
escura, vulcões, onde arde
o fogo sagrado da liberdade.

Luiz Gama
Quando o assunto a ser trabalhado é literatura-afro, surge necessariamente uma questão que muitos professores não questionam, mas deveriam pensar no assunto. É possível constatar que há escritores negros ou descendentes que têm sua literatura consagrada como “brasileira”, e não filiada à etnia A ou B. O fato de serem etnicamente negros os coloca dentro da classificação sugerida pela lei 10.639? Ou se não enunciam como escritores negros, isso os exclui?
É de consenso geral considerar Machado de Assis, Lima Barreto, Castro Alves, Solano Trindade e outros no mesmo nível como escritores integrantes da cultura dos afro-descendentes brasileiros. A visão estética dos afro-descendentes na maioria das vezes, parte de um enunciador que está “fora” da perspectiva do enunciado. A distorção ou banimento de uma visão artística dos meios oficiais de ensino vai além da mera adequação ou não aos cânones consagrados: é uma imposição da classe dominante. Assim, descortina-se porque há a marginalidade intelectual e material de uma tendência estética que se mostra tão múltipla quanto é apresentada nos textos de Cruz e Souza, Luiz Gama, Solano Trindade, Lima Barreto, e outros ainda desconhecidos do grande público. A vivência não é quesito suficiente para formar uma obra, o artista não se constitui apenas por dada experiência, mas pela capacidade de transformá-la em objeto estético. Daí a especificidade do indivíduo que capta, da vida, elementos para construir um todo organizado e acabado na obra. Deve-se lembrar, por exemplo, que a mesma sociedade que vivenciou Castro Alves também nos deu Luiz Gama. Apenas um é citado na maioria esmagadora dos compêndios sobre história da literatura brasileira. Frisamos que não se trata simplesmente de comparar estilos diferentes, mas de refletir do porquê apenas um foi consagrado como poeta que combatia a escravidão. Ou porque, entre os modernistas, Solano Trindade não é sequer citado. Por isso, a escola tem papel fundamental na difusão da cultura e história do povo brasileiro na sua múltipla formação. A lei 10.639, no mínimo, expõe que a violência de classe existe também no campo das idéias. Fora isso, apresenta para essa geração de estudantes outras experiências estéticas, históricas e políticas dos afro-descentes brasileiros.

Fonte:
BERND, Zilá – “Introdução à Literatura Negra” – Brasiliense, SP, 1988, p. 20)